sábado, 9 de abril de 2011

De súbito cessou a vida - Henriqueta Lisboa


De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.
 

O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.
 

Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.
 

Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.
 

Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.
 

Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.
 

Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.
 

Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...
 

Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)
 

Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.

Publicado: A Face Lívida (1945)

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